26 Fevereiro 2022
“A invasão da Ucrânia por tropas russas é, até agora, o degrau mais alto no conflito entre a Rússia e o Ocidente em mais de três décadas”. A reflexão é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 25-02-2022. A tradução é do Cepat.
O último reduto ainda em chamas de uma guerra na Europa de repente se transformou em um conflito de proporções gigantescas. A invasão da Ucrânia por tropas russas é, até agora, o degrau mais alto no conflito que opõe a Rússia e o Ocidente há mais de três décadas em torno tanto da expansão da Aliança Atlântica, como do conflito nas regiões separatistas localizadas no leste da Ucrânia ou da configuração política do mundo.
É também o ataque militar mais importante ocorrido na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Não é mais a Guerra Fria ou o pós-Guerra Fria, mas uma guerra frontal, cara a cara, visão de mundo contra visão de mundo, sem palavras adocicadas que envolvam as intenções. Ao anunciar o início da ofensiva, o presidente russo Vladimir Putin disse: “Quem quiser ficar no nosso caminho ou ameaçar nosso país ou nosso povo deve saber que a resposta russa será imediata e terá consequências nunca antes vistas em nossa história”.
Com “superioridade aérea absoluta”, o exército russo se aproximava de Kiev, capital ucraniana, na quinta-feira com a intenção de “decapitar o governo” para colocar um pró-russo, segundo fontes militares ocidentais. Depois de disparar mais de 160 mísseis contra alvos militares ucranianos, as forças russas se moveram rapidamente da Bielorrússia para o sul e “se aproximaram de Kiev” ao longo do dia, disse um alto funcionário do Pentágono. “Basicamente, eles pretendem decapitar o governo e instalar sua própria forma de governo, o que explicaria esse impulso inicial em direção a Kiev”, disse. De acordo com um alto funcionário da inteligência ocidental, “as defesas aéreas da Ucrânia foram eliminadas e eles não têm mais força aérea para se proteger”.
O presidente ucraniano Volodimir Zelensky lamentou, na sexta-feira, que seu país foi deixado “sozinho” para se defender contra a invasão russa, que custou pelo menos 137 vidas nas primeiras 24 horas. “Eles nos deixaram sozinhos para defender nosso Estado”, disse Zelensky em um vídeo postado na conta presidencial. “Quem está disposto a lutar conosco? Não vejo ninguém. Quem está pronto para dar à Ucrânia uma garantia de adesão à OTAN? Todos estão com medo”, lamentou.
Horas antes, o presidente dos EUA, Joe Biden, havia reconhecido a falta de unidade entre as potências ocidentais para dar uma resposta contundente ao ataque russo, enquanto anunciava novas sanções econômicas que transformariam seu colega russo em um “pária”. Em um discurso na Casa Branca, Biden disse que o Ocidente retaliará mais quatro bancos russos e que as restrições à exportação cortarão “mais da metade das importações de tecnologia da Rússia. Isso imporá um alto custo à economia russa, tanto de imediato quanto de longo prazo”, disse. No entanto, ele acrescentou que não enviará tropas para a Ucrânia.
Em Londres, o primeiro-ministro Boris Johnson disse que a Grã-Bretanha congelou ativos de grupos bancários e fabricantes de armas, sancionou mais cinco oligarcas e fechou seu espaço aéreo para a companhia aérea russa Aeroflot. O vice-chanceler alemão, Robert Habeck, disse que as sanções ocidentais “isolarão a economia russa do progresso industrial, atingirão e congelarão ativos e participações financeiras e limitarão drasticamente o acesso aos mercados europeu e estadunidense”.
Em seu discurso televisionado, aquele que fora até três dias atrás o principal rosto da opção diplomática para a crise, ou seja, a negociação com a Rússia, o presidente francês, Emmanuel Macron, admitiu que o momento era de um salto no escuro: “É um ponto de inflexão na história da Europa e do nosso país”. Macron descreveu a invasão como um “ato de guerra”, alertou que responderá “sem fraqueza e a sangue frio” e acusou o presidente russo de ter cometido um erro imperdoável: “ao renegar sua palavra, ao rejeitar os canais diplomáticos, ao escolher a guerra, Vladimir Putin não apenas atacou a Ucrânia: ele decidiu realizar o mais sério ataque contra a paz em nossa Europa em décadas”.
Não faltaram palavras para condenar a invasão e os atos de resposta ainda não se concretizaram. A União Europeia reuniu-se em uma cúpula urgente de chefes de Estado e de governo para aprovar um novo conjunto de sanções que se somam às já acordadas há três dias, quando Putin reconheceu por decreto a independência das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, em Donbas. As sanções serão “sérias e de grandes consequências”, disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, acrescentando que “o presidente Putin está tentando voltar aos tempos do Império Russo”. Leyen também especificou a dupla base das sanções: primeiro, visa colocar a Rússia de joelhos ao “acabar com o crescimento, aumentar o financiamento e a inflação, bem como acelerar a fuga de capitais”; segundo, cortando o acesso de Moscou às tecnologias. Deve-se lembrar, no entanto, que as sanções adotadas contra a Rússia desde 2014 nunca dissuadiram Moscou de deter suas ambições na Ucrânia. Além disso, essas sanções foram “medidas”, ou seja, calculadas para não causar muito dano a Moscou e, consequentemente, às economias dos países que as adotaram.
A dupla face das democracias ocidentais sempre aparece devido a algum conflito onde a intensidade coloca seus interesses em jogo. Em relação à aliança militar ocidental da OTAN, o organismo reuniu-se na quinta-feira, 25, para ativar o artigo 5º do Tratado da Aliança, que contempla a resposta militar da OTAN em caso de ataque do exterior contra algum de seus membros. Até agora este não tem sido o caso. A Ucrânia não é membro da OTAN.
A China, por sua vez, assumiu uma postura equidistante. Por um lado, seu ministro das Relações Exteriores, Wang Yi, disse que “entende as preocupações de segurança razoáveis da Rússia”. Mas, por outro lado, “a China sempre respeitou a soberania e a integridade territorial de todos os países”, destacou o diplomata. “A questão ucraniana tem uma história especial e complicada”, concluiu Wang.
Ex-república soviética que conquistou a independência em 1991, a Ucrânia é um país de 44 milhões de habitantes situado entre a Rússia e a Europa. O país está dividido em uma zona pró-ocidental a oeste – majoritária – e os separatistas pró-russos a leste que se recusam a ser absorvidos pelo Ocidente. 17% da população é de origem russa e a parte oriental é principalmente russófona. O atrito atual decorre dessa configuração, em particular a eleição de um líder pró-Ocidente em 2005, Viktor Louchtchenko. Foi ele quem iniciou a virada da Ucrânia para a Europa e a OTAN. Em 2010, a eleição do pró-russo Viktor Ianoukovitch pôs fim a essa reaproximação e ele voltou a se inclinar para a Rússia. Isso deu origem a gigantescas manifestações na Praça da Independência (Maidan), em Kiev, onde os pró-europeus exigiram a renúncia de Ianoukovitch. Essa revolução que deixou 80 mortos precipitou a renúncia do chefe de Estado em fevereiro de 2014, bem como a anexação da Crimeia decidida por Putin.
O confronto entre a Rússia e o Ocidente concentrou-se na Ucrânia. Os europeus viram um paraíso para seus valores e Putin uma intromissão em um território essencial. A ruptura tomou forma em Donbas, especificamente nas províncias de Donetsk e Lugansk, cuja independência Moscou reconheceu em fevereiro, poucos dias antes de invadir a Ucrânia. A luta acirrada fez com que a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) interviesse como mediadora (2015) e depois, em 2016, a França e a Alemanha, sob cuja arbitragem as negociações foram retomadas. Em 2015, um cessar-fogo foi acordado e os acordos de Minsk foram assinados. A cessação das hostilidades durou apenas 10 dias e nestes 8 anos de conflito morreram mais de 15 mil pessoas.
A guerra é o sol mais escuro que pode iluminar a Europa e seus líderes afastam-na como uma maldição. Duas guerras mundiais, 1914-1918 e 1939-1945, 10 milhões de mortos na primeira e 50 milhões na que se seguiu, deixaram uma marca profunda entre os líderes para quem, pelo menos na Europa, a guerra nunca pode ser uma opção. A ocupação da Ucrânia é uma cópia autenticada daquilo que também aconteceu em 2008 na Geórgia, quando a Rússia reconheceu duas repúblicas separatistas, a Abecácia e a Ossétia do Sul, depois que a Geórgia atacou brutalmente a Ossétia do Sul. Mais tarde, Moscou ocupou 20% do território da Geórgia. O contexto espetacular do conflito de hoje esconde, de fato, outros antagonismos armados distantes do teatro europeu através do qual o Ocidente e a Rússia encenaram sucessivos confrontos.
Em seus 22 anos no poder, o presidente russo Vladimir Putin esteve à frente de vários conflitos, começando pelo que estabeleceu sua influência e aura, a guerra na Chechênia (a segunda fase, 1999, quando Putin era primeiro-ministro), a República independendista de maioria muçulmana localizada no norte do Cáucaso. Síria e Mali são os dois teatros onde, no século XXI, o envolvimento da Rússia fez recuar a Europa e os Estados Unidos.
Em 2015, o poderio militar russo se deslocou para a Síria em apoio ao presidente Bachar al-Assad. O chefe de Estado enfrentava uma revolta interna derivada da Primavera Árabe e apoiada por armas e assessores dos Estados Unidos e da Europa. Putin ordenou a intervenção de sua aviação e com ela e os 63 mil homens que serviram na campanha síria derrotou a coalizão local e internacional que enfrentou o poder de al-Assad.
O último “cara a cara” é mais recente. Trata-se do Mali, onde os mercenários russos do grupo Wagner apressaram o fim da presença militar francesa e europeia naquele país. Em 2014, a França interveio no Mali através da operação Barkhane com o apoio secundário dos aliados para combater os grupos armados salafistas da Al-Qaeda e do Estado Islâmico instalados na região do Sahel, na chamada “zona das três fronteiras” onde se encontram Mali, Burkina-Faso e Níger.
De todas essas guerras entre os dois adversários, nenhuma terá mudado o curso da história de forma tão virulenta quanto a ocupação da Ucrânia. Talvez estejamos na fronteira do que China e Rússia definiram como “a nova era” no documento que ambos os países assinaram em 4 de fevereiro. Emmanuel Macron telefonou para Vladimir Putin ontem à noite para exigir “o fim imediato das operações militares na Ucrânia”. Putin já o traiu duas vezes. Certamente, não o ouvirá uma terceira vez.
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Conflito Rússia-Ucrânia: bombardeio russo, alarme global e mais sanções do Ocidente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU